No escuro
03:42
Os
carros não param, exceto quando interrompidos pela passeata que segue próxima
gritando qualquer coisa mesclada de verde e amarelo. A cidade tem mesmo um
barulho ensurdecedor durante o dia e às vezes à noite também, quando os
pensamentos não deixam dormir e as horas se arrastam lentamente.
Com um
passo de cada vez, percebe-se a caminhada que nunca foi tão longa quanto hoje.
Sabe que não foi a distância que aumentou ou mesmo a idade que pesou. O cansaço
está presente diariamente nos olhos vagantes e nos ombros baixos de qualquer um
em todo lugar deste país.
Pequenas
casas se amontoam enfileiradas nesta rua e na outra, enquanto castelos são
levemente balançados em algum lugar de Brasília. Aqui, a dona de casa decide se
põe mais água no feijão enquanto escuta os jornais a discutir o aumento da
água, da energia e da cesta básica. Chama o marido e serve o jantar com as
luzes apagadas.
Velas
não são sinal de romantismo, são sinal de economia. Nenhum aparelho mais
resiste por muito tempo nas tomadas, nem mesmo a televisão, que antes ditava as
últimas notícias, ficou a salvo.
O
marido conta que foram mais quinze funcionários demitidos só nesta semana e a
mulher prepara o altar e mais uma vela, dessa vez pro santo. Que não dispensem
o marido!
Conta
ainda sobre o salário, que dessa vez recebeu parcelado, sorte ter recebido, ele
faz questão de ressaltar. E a mulher coloca mais uma vela pro santo. Que não
dispensem o marido!
O
marido fica em silêncio e ouve-se apenas o tilintar dos pratos. Agora ela quer
falar, ela precisa falar. Foi ao supermercado hoje. Percorreu as prateleiras
numa busca incessante. Os funcionários trocavam as tabelas de preços mais
rápido do que ela podia alcançar os produtos. Era como correr a maratona. Por
fim, ao chegar no caixa, percebeu que o valor era o dobro do que tinha ainda na
carteira e mandou pendurar a conta. O que comiam ainda nem estava pago.
O
marido levanta e coloca mais uma vela pro santo, ao voltar tropeça na própria
cadeira, está escuro demais. Tenta acender a luz. Nada acontece. Anda inquieto
pela casa procurando as gavetas.
A
última lâmpada. Sobe na cadeira, a mesma na qual tropeçou, troca a lâmpada.
Desce e tenta novamente acender a luz. Nada acontece. Pega uma vela, acende e
dessa vez fica com ela.
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